Quem
gostou de Persépolis,
primeira obra da iraniana naturalizada francesa Marjane Satrapi, cujo
primeiro tomo saiu em 2000, irá adorar este Frango com
Ameixas (2004), Não que haja
grandes pontos de contacto entre ambos o títulos, tirando o aspecto
não despiciendo de a autora ser a mesma e de tratar-se de uma obra
realizada na sequência daquele êxito global. Perséplis é
uma narrativa autobiográfica linear, em que o talento de Satrapi é
alimentado e servido pelo processo catárctico de exposição e
transfiguração da própria existência.
Em
Frango com Ameixas o
universo familiar mantém-se, mas é outro, desde logo o tempo da
acção, anterior ao nascimento da autora, que contudo aparece numa
bem bem conseguida prolepse. Trata-se da triste história de Nasser
Ali Khan, tio avô que Marjane nunca chegará a conhecer. Nasser era
um artista virtuoso, tocador de tar – instrumento de cordas
iraniano, que se expandiu pelo Cáucaso, estando, provavelmente, na
origem da cítara indiana –, cujo talento o tornara popular entre o
público iraniano na década de 1950. É alguém que se consagra
inteiramente à sua arte, ficando tudo o resto num plano secundário.
Até ao dia fatídico em que, numa discussão doméstica, o
instrumento é irremediavelmente danificado e Nasser Ali perde o
gosto pela existência, já que de nenhum outro tar consegue, quando
tangido, retirar sonoridade semelhante ao que lhe fora oferecido pelo
seu mestre. Perdida a paixão pela arte a que se devotara, a vida
deixa de apresentar qualquer interesse, pelo que Nasser Ali decide
dela prescindir, num suicídio por desistência, no próprio seio
familiar. Neste processo doloroso e rápido, que durará uma semana,
somos transportados com a memória de Nasser a vários momentos
fulcrais do passado, e ficamos a saber que o amor que devotava à
música e ao instrumento donde ela promanava era também um amor
antigo, uma paixão cujos contornos se desvendam à media que a
leitura se faz. E é precisamente no plano narrativo que Marjanne
Satrapi surge como autora amadurecida, dotada de mestria na
composição e no tratamento do tempo. O prémio Alph Art para o
melhor álbum de 2005, do Festival de Angoulême, porventura o mais
importante certame de BD, é pois sem surpresa.
Frango
com Ameixas é uma história de
carácter universal, em que o 'exotismo' persa aparece de forma muito
lateral, e sempre a propósito. Apesar de todas as dificuldades, o
Irão, pátria de Omar Khayyam (1048-1131) e Rumi (1207-1273), ambos
citados no texto, é uma cultura pujante; o seu cinema, talvez o que
melhor conhecemos da cultura iraniana actual é assombroso de bom.
Satrapi, apesar de iraniana na diáspora, e também ela dedicada à
realização cinematográfica, é parte dessa brilhante cultura,
donde saiu uma das mais esplendorosas civilizações que a História
nos deu.
Frango
com Ameixas
texto
e desenhos: Marjane Satrapi
edição:
Levoir, Lisboa, 2019
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