quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

um amor tristíssimo

Quem gostou de Persépolis, primeira obra da iraniana naturalizada francesa Marjane Satrapi, cujo primeiro tomo saiu em 2000, irá adorar este Frango com Ameixas (2004), Não que haja grandes pontos de contacto entre ambos o títulos, tirando o aspecto não despiciendo de a autora ser a mesma e de tratar-se de uma obra realizada na sequência daquele êxito global. Perséplis é uma narrativa autobiográfica linear, em que o talento de Satrapi é alimentado e servido pelo processo catárctico de exposição e transfiguração da própria existência.
Em Frango com Ameixas o universo familiar mantém-se, mas é outro, desde logo o tempo da acção, anterior ao nascimento da autora, que contudo aparece numa bem bem conseguida prolepse. Trata-se da triste história de Nasser Ali Khan, tio avô que Marjane nunca chegará a conhecer. Nasser era um artista virtuoso, tocador de tar – instrumento de cordas iraniano, que se expandiu pelo Cáucaso, estando, provavelmente, na origem da cítara indiana –, cujo talento o tornara popular entre o público iraniano na década de 1950. É alguém que se consagra inteiramente à sua arte, ficando tudo o resto num plano secundário. Até ao dia fatídico em que, numa discussão doméstica, o instrumento é irremediavelmente danificado e Nasser Ali perde o gosto pela existência, já que de nenhum outro tar consegue, quando tangido, retirar sonoridade semelhante ao que lhe fora oferecido pelo seu mestre. Perdida a paixão pela arte a que se devotara, a vida deixa de apresentar qualquer interesse, pelo que Nasser Ali decide dela prescindir, num suicídio por desistência, no próprio seio familiar. Neste processo doloroso e rápido, que durará uma semana, somos transportados com a memória de Nasser a vários momentos fulcrais do passado, e ficamos a saber que o amor que devotava à música e ao instrumento donde ela promanava era também um amor antigo, uma paixão cujos contornos se desvendam à media que a leitura se faz. E é precisamente no plano narrativo que Marjanne Satrapi surge como autora amadurecida, dotada de mestria na composição e no tratamento do tempo. O prémio Alph Art para o melhor álbum de 2005, do Festival de Angoulême, porventura o mais importante certame de BD, é pois sem surpresa.
Frango com Ameixas é uma história de carácter universal, em que o 'exotismo' persa aparece de forma muito lateral, e sempre a propósito. Apesar de todas as dificuldades, o Irão, pátria de Omar Khayyam (1048-1131) e Rumi (1207-1273), ambos citados no texto, é uma cultura pujante; o seu cinema, talvez o que melhor conhecemos da cultura iraniana actual é assombroso de bom. Satrapi, apesar de iraniana na diáspora, e também ela dedicada à realização cinematográfica, é parte dessa brilhante cultura, donde saiu uma das mais esplendorosas civilizações que a História nos deu.


Frango com Ameixas
texto e desenhos: Marjane Satrapi
edição: Levoir, Lisboa, 2019


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