segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

um Astérix à la Goscinny

O génio combinado de Goscinny (1926-1977) e de Uderzo (n. 1927) marcou o imaginário do nosso tempo. O primeiro pertence, aliás, àquele grupo raro de autores cujas expressões entraram no quotidiano – “uma aldeia gaulesa”, aplicada a uma comunidade irredutível, incapaz de se normalizar, será o exemplo mais saliente, de resto muito usada entre nós nos tempos da Troika.
Depois de alguns anos em colaboração, e após o surpreendente 'chumbo' de Humpa-pá, o Pele-Vermelha num referendo aos leitores do Tintin belga, Goscinny e Uderzo criam este universo centrado no pequeno gaulês, apresentado no número inaugural da revista Pilote, em Outubro de 1959. A ideia é um achado: graças à poção mágica do druida Panoramix, cuja ingestão confere a quem a beba uma força sobre-humana, a aldeia consegue rechaçar os assaltos das poderosas legiões de César. As narrativas vão-se aprimorando logo a partir da segunda história, A Foice de Ouro, o traço de Uderzo como o humor de Goscinny; explorando o gag de actualidade, as referências históricas, recentes ou da Antiguidade, e um irresistível manejo dos equívocos e das idiossincrasias do género humano, atingem níveis elevadíssimos. Recordemos A Zaragata, O Domínio dos Deuses, O Adivinho, todos os restantes.
Após a morte inesperada de Goscinny, Uderzo lançou-se sozinho ao trabalho, com resultados desiguais, mas com a fasquia muito alta e por vezes vencida (O Grande Fosso, A Odisseia de Astérix, As 1001 Horas de Astérix) Retirado este, a grande responsabilidade de continuar coube a Jean-Ives Ferri (Mostanagem, Argélia, 1959) e Didier Conrad (Marselha, 1959), autores dos últimos quatro álbuns.
Este mergulho na história gaulesa, com uma suposta filha do chefe arverno Vercingétorix, derrotado por Júlio César na batalha de Alésia (52 a.C.), parece-nos plenamente conseguido, com Ferri a revelar-se pela primeira vez um verdadeiro émulo de Goscinny, o que, convenhamos, não é fácil. O aproveitamento recorrente do trauma de Alésia, fazendo com que o nome daquele chefe gaulês seja apenas sussurrado, é gerador de situações da maior comicidade, claramente goscinnyanas... Já Conrad não é Uderzo (ninguém é Uderzo), e ainda bem. As revisitações dos clássicos da BD franco-belga, caracterizam-se, nos casos mais conhecidos, por uma sujeição ao cânone (supomos que por imposições contratuais de diversa natureza), apesar de alguns avanços em relação aos originais, o que é importante, sob pena de cairmos numa mastigação sem grande interesse. É sempre difícil fazer ‘igual’ e bem, e bem melhor partir dos traços gerais de cada série com o(s) respectivo(s) autor(es). Na BD franco-belga não haverá melhor exemplo que o de Spirou. Conrad parece querer seguir o seu próprio caminho, e tão maior relevância poderá alcançar quanto mais se libertar da ‘tutela’ de Uderzo.
Astérix – A Filha de Vercingétorix
texto: Jean-Ives Ferri
desenho: Didier Conrad
edição: Asa, Alfragide, 2019




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