O
génio combinado de Goscinny (1926-1977) e de Uderzo (n. 1927) marcou
o imaginário do nosso tempo. O primeiro pertence, aliás, àquele
grupo raro de autores cujas expressões entraram no quotidiano –
“uma aldeia gaulesa”, aplicada a uma comunidade irredutível,
incapaz de se normalizar, será o exemplo mais saliente, de resto
muito usada entre nós nos tempos da Troika.
Depois
de alguns anos em colaboração, e após o surpreendente 'chumbo' de
Humpa-pá, o Pele-Vermelha
num referendo aos leitores do Tintin belga,
Goscinny e Uderzo criam este universo centrado no pequeno gaulês,
apresentado no número inaugural da revista Pilote,
em Outubro de 1959. A ideia é um achado: graças à poção mágica
do druida Panoramix, cuja ingestão confere a quem a beba uma força
sobre-humana, a aldeia consegue rechaçar os assaltos das poderosas
legiões de César. As narrativas vão-se aprimorando logo a partir
da segunda história, A Foice de Ouro,
o traço de Uderzo como o humor de Goscinny; explorando o gag de
actualidade, as referências históricas, recentes ou da Antiguidade,
e um irresistível manejo dos equívocos e das idiossincrasias do
género humano, atingem níveis elevadíssimos. Recordemos A
Zaragata, O Domínio
dos Deuses, O
Adivinho, todos os restantes.
Após
a morte inesperada de Goscinny, Uderzo lançou-se sozinho ao
trabalho, com resultados desiguais, mas com a fasquia muito alta e
por vezes vencida (O Grande Fosso,
A Odisseia de Astérix,
As 1001 Horas de Astérix)
Retirado este, a grande responsabilidade de continuar coube a
Jean-Ives Ferri (Mostanagem, Argélia, 1959) e Didier Conrad
(Marselha, 1959), autores dos últimos quatro álbuns.
Este
mergulho na história gaulesa, com uma suposta filha do chefe arverno
Vercingétorix, derrotado por Júlio César na batalha de Alésia (52
a.C.), parece-nos plenamente conseguido, com Ferri a revelar-se pela
primeira vez um verdadeiro émulo de Goscinny, o que, convenhamos,
não é fácil. O aproveitamento recorrente do trauma de Alésia,
fazendo com que o nome daquele chefe gaulês seja apenas sussurrado,
é gerador de situações da maior comicidade, claramente
goscinnyanas... Já Conrad não é Uderzo (ninguém é Uderzo), e
ainda bem. As revisitações dos clássicos da BD franco-belga,
caracterizam-se, nos casos mais conhecidos, por uma sujeição ao
cânone (supomos que por imposições contratuais de diversa
natureza), apesar de alguns avanços em relação aos originais, o
que é importante, sob pena de cairmos numa mastigação sem grande
interesse. É sempre difícil fazer ‘igual’ e bem, e bem melhor
partir dos traços gerais de cada série com o(s) respectivo(s)
autor(es). Na BD franco-belga não haverá melhor exemplo que o de
Spirou. Conrad parece querer seguir o seu próprio caminho, e tão
maior relevância poderá alcançar quanto mais se libertar da
‘tutela’ de Uderzo.
Astérix
– A Filha de Vercingétorix
texto:
Jean-Ives Ferri
desenho:
Didier Conrad
edição:
Asa, Alfragide, 2019
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