quarta-feira, 27 de novembro de 2019

toy stories

Alvitre ao leitor: quando estiver com este livro nas mãos, comece por não ler, mas observar; folheie demoradamente, deixe os olhos vogarem ao ritmo que o autor imprimiu a cada prancha, depois fixe as vinhetas, demore-se nas páginas, nos diversos e bem doseados planos dos quadradinhos, admire o excelente trabalho de claro-escuro, a partir, supomos, de vários tipos de canetas de feltro; chegue ao fim, e então comece a leitura. Está por sua conta.


Pum! / Qual Pum! É Bang! Isto é BD! / ? / Crack! à la Hugo Pratt. / Click! Vazio. // Toca a mexer malta, ou acabamos num caixote no sótão ou na Feira da Ladra.» Palavras iniciais deste livro de Filipe Abranches (Lisboa, 1965), Selva!!!: diálogos de soldadinhos de guerra em missão por floresta espessa ou sobre oceanos de mar revolto.


Todos quanto, rapazes (e raparigas, porque não?...), brincámos aos tiros com miniaturas, recordamo-nos dos incríveis teatros de guerra que criávamos. Índios e cowboys, aliados e nazis, unionistas e confederados, mouros e cruzados. Uns quantos livros de capa dura dispostos no chão do quarto dava para fazer um qualquer forte da cavalaria americana ou um castelo medieval, à falta de modelos de escala reduzida. Os bonecos eram da “Britains”, muito bem feitos, em resina de poliester com uma base verde, de metal; ou então uns bonecos da “Airfix”, para quem quisesse e tivesse paciência para pintá-los... Experimentavam-se as tácticas com a imaginação e a ajuda do cinema, televisão e revistas aos quadradinhos. Uma delas, aqui graficamente citada, o Falcão, com estupendas séries fixas, edições distribuídas pela Agência Portuguesa de Revistas: Sandor, Ogan, Oliver, Kalar e o Major Alvega.


História dentro da história, intromissão do real na ficção, uma vinheta em falta, pórticos que se atravessam, do mundo da imaginação ao mundo verdadeiro, onde a mentira é maior: a guerra tem sempre acoplada a palavra “Paz”, com maiúsculas e tudo. Ainda agora a vimos, na operação “Paz para a Primavera”, turcos contra curdos, uns que contemporizaram com o Daesh, outros que lutaram contra ele, também em nosso benefício. Parece que há mais verdade na BD, mesmo que os intervenientes sejam de poliester ou plástico.


No colofão, o autor lembra os pais, que lhe compravam saquetas com revistas aos quadradinhos para ler na praia, e agradece também ao “Buck Dany”, a quem roubou muitas vinhetas. Buck Dany, extraordinária BD de guerra e aviação criada pela dupla Jean-Michel Charlier – Victor Hubinon para a revista Spirou (os mesmos que conceberam o pirata Barba Ruiva para as páginas da Pilote). Sim, há aqui grandes quadr(ad)os inspirados na arte daquele mestre belga, homenagem com maturidade gráfica de quem já leva anos disto.


Selva!!!


texto e desenhos: Filipe Abranches


edição: Umbra Edições, 2019


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