Depois de Tintin, o outro
grande ícone belga da BD é Spirou, um adolescente, groom do Moustic
Hotel. Criado em 1938 por Rob Vel (1909-1991), para a revista que
leva o seu nome e ainda hoje se publica, tem pontos de contacto com a
personagem de Hergé: jovens que vão amadurecendo
imperceptivelmente, guiados por um sentido de justiça e pelo
companheirismo. Há uma mascote, o esquilo Spip; um amigo dilecto,
Fantásio, jornalista; um sábio, o conde de Champignac; só não há
Dupond & Dupont, mas em contrapartida uma criatura igualmente
esquipática: o Marsupilami. Enquanto Tintin, porém, não teve
continuidade, por vontade de Hergé, para Spirou trabalharam muitos
artistas, sendo o mais notável André Franquin (1924-1997). A série
foi, entretanto, confiada a diversos autores; um deles, Émile Bravo
(Paris, 1964), tem em curso de publicação uma extensa narrativa de
quatro tomos, L’Espoir Malgré Tout / A Esperança Apesar de
Tudo, continuando a inicial e brilhante incursão do autor nas
aventuras do nosso herói, em Le Journal d’un Ingénu
(2008).
O
primeiro volume, Un Mauvais Départ, coloca-nos em Bruxelas,
em Janeiro de 1940, meses antes da invasão da Bélgica. Spirou,
muito novo, mas com uma experiência de vida difícil é uma
personalidade forte, com dúvidas, paixões e uma candura própria da
idade, contornada pela inteligência. Um dos motores da narrativa é
a sua paixão por uma jovem comunista judia-alemã, do Komintern, de
quem recebe uma carta inquietante – a História a desenrolar-se ao
lado da vida, e a colher as suas vítimas.
Se
Spirou representa a ética em tempos bárbaros, Fantásio aparece-nos
como um indiferente e apatetado homem da rua, o que significa
uma desvalorização da personagem como a conhecíamos. O jornalista
originalmente é um obsessivo hiperactivo, o complemento de Spirou,
tal como Haddock o é de Tintin; mas como Bravo de alguma forma
refunda a série, é possível que Fantásio evolua com as provações
da guerra. A trama é, de resto, muito rica e claramente escrita para
os confusos dias de hoje.
Bravo
tinha duas dificuldades de monta nesta abordagem vincadamente
autoral: a primeira é a de se defrontar com um clássico; a outra, a
compatibilização do fundo humorístico de Spirou com refugiados de
guerra e crianças com fome. O que pareceria uma missão impossível,
é plenamente conseguido, à custa, claro, do pobre Fantásio, a que
se juntam, hilariantes, separatistas flamengos, vizinhos franceses,
escuteiros católicos, colaboracionistas… – estes geralmente
representados em tom cinzento, enquanto os nazis estão de negro
carregado, em (im)pura linha clara.
L’Espoir
Malgré Tout – vol. I
Texto
e desenho: Émile Bravo.
Dupuis,
Bruxelas, 2018
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