terça-feira, 17 de setembro de 2019

Riad Sattouf, O DIÁRIO DE ESTHER -- HISTÓRIAS DOS MEUS 10 ANOS (2016)

As crianças estão na BD desde o princípio, e com momentos altos – lembremos os Peanuts, de Charles M. Schulz. Para o franco-sírio Riad Sattouf (Paris, 1978), criador do auto-referencial O Árabe do Futuro (2014) e também realizador, nomeadamente da excelente comédia Les Beaux Gosses (2009), o mundo da infância e da juventude é um tema persistente.
Cheia de carisma e adorável criancice, Esther, nascida nas páginas do semanário L’Obs, em 2015, não é só mais uma criança nos quadradinhos; antes da personagem de papel, está Esther A., a menina de carne e osso, informante e filha de amigos do autor. Todo o espanto, toda a fantasia, todos os sonhos improváveis e todos os ‘amores’ impossíveis são maravilhosamente recriados por Sattouf: Esther tem como grandes aspirações ser loura, famosa e possuir um ipad, artefacto que o pai, um professor de ginástica com espírito crítico, lhe nega, por evidente despropósito para quem ainda nem completou os dez anos. Infelizmente para Esther, a maioria dos outros progenitores não têm a mesma opinião. Um pequeno apartamento, em que partilha o quarto com o irritante António, o irmão de 14 anos, é o seu lar. A família, remediada, completa-se com a mãe, empregada bancária e doméstica em regime pós-laboral, por isso muitas vezes cansada, e a avó, cuja casa na Bretanha é local de férias. Outro palco privilegiado é a escola, em especial o recreio. Esther tem duas amigas dilectas: Eugénia, criança rica e por vezes pretensiosa, e Cassandra, menina negra cujo pai certo dia partiu para não mais voltar.
As circunstâncias da série são as expectáveis: a recriação recorrente dos maneirismos dos adultos, a relutância pelas grosserias dos rapazes, cuja missão parece ser a de maçá-las com o seu gozo e a sua má-criação – se bem que por vezes haja qualquer coisa que as desperta. Introduzido com leveza e sempre a propósito pelo autor, a incompreensão do vasto mundo adulto da política, as manifestações incipientes de discriminação social e racial, que ainda não assimilam inteiramente, e as questões de género são alguns tópicos obrigatórios. Esther, contudo, não é a Mafalda do Quino, contestatária no seio de uma família conformista, que muitas vezes parece uma mulher pequena; Esther é sempre criança (o gag sobre o atentado ao Charlie Hebdo é um bom exemplo). A série acompanhará o crescimento da miúda, pelo que teremos oportunidade de assistir à evolução desta família.
Organizado graficamente sob a forma de gag (história humorística de uma prancha), dividido em duas páginas, o livro tem o formato de uma edição de tiras de BD. O texto, além de reproduzir as falas das personagens em filacteras (os ‘balões’), é acrescentado por geniais comentários de Esther em cursivo, que acentuam o tom humorístico.

edição: Gradiva, Lisboa, 2019


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