Não
há respostas simples para o terrorismo islâmico, duas palavras que
se contaminam e degradam, apesar da colecção de crimes do Ocidente
(o Iraque ainda ontem) e de os próprios muçulmanos se contarem
entre as principais vítimas: o fanatismo sectário e assassino é a
casca grosseira resultante de um longo processo histórico de acção
e reacção, ressentimento e revolta, em que os únicos inocentes são
quantos foram abatidos.
Como
enfrentar a morte estúpida de um ente querido, na sua inesperada
aleatoriedade? Como gerir a impotência diante da súbita perda
irreparável? Como lidar com a própria dor? Como desenhar a
carnificina sem ceder ao mau gosto? Para um problema tão complexo e
de difícil resolução (?), será sempre avisado encará-lo de
frente, sem um maniqueísmo simplório. Foi o que tentou fazer a
editora Des ronds dans l’O, de Vincennes, ao convidar seis autores
de BD a desenhar número igual de depoimentos de familiares de
vítimas do atentado de Nice, ocorrido a 14 de Julho de 2016. Nessa
noite de celebração, um camião conduzido por um zombie fanatizado
levou à frente tantos quantos pôde, massacrando 86 pessoas e
ferindo 458.
O
álbum Promenade de la Mémoire
sairá em Março; no entanto, L’Immanquable,
no seu último número, pré-publicou duas das seis narrativas, com
entrevistas às respectivas autoras, histórias tocantes que
perscrutam a intimidade da dor.
Em
“Palavras para Aldjia – o relato de Seloua”, a irmã da
narradora perde a vida no Passeio dos Ingleses, sob o olhar da filha,
que não tem coragem de dar ela própria a notícia aos adultos da
morte da mãe, numa intuitiva atitude de autoprotecção em face de
expectáveis traumas futuros. Será a tia, Seloua, quem procurará
saber de notícias de Aldjia, nessa aflição tendo defrontar-se com
a fúria horrorizada dos franceses europeus, que a vêem, sendo
magrebina, não como mais uma vítima, mas cúmplice. O trabalho de
Jeanne Puchol é extraordinário, com todas as pranchas a preto e
branco, excepto a última, funcionado a cor como virar de página em
direcção ao apaziguamento, mas com a memória presente. As imagens
relativas ao momento do atentado são todas indirectas, numa prancha
com múltiplas vinhetas.
A
segunda história, “A dor das palavras – O relato de Anne”,
concebida por Céline Wagner em tons esfumados, fala-nos de uma
pintora que à hora do atentado em Nice está com o marido e o filho
num cruzeiro nos fiordes noruegueses, longamente preparado. Aí sabem
do sucedido, com a preocupação de a filha, regressada havia pouco
do estrangeiro, estar também ela na Promenade. Será ainda em solo
norueguês que irão saber da sua morte, pelas notícias do jornal
Nice-Matin. O desgosto
insuportável interferirá no trabalho da pintora, em especial no
quadro que deixara planeado para responder a um pedido daquela a quem
dera a vida. Vida roubada assim, sem porquê .
Promenade
de la Mémoire
Des
Ronds dans l’O, Vincennes, 2020
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