sexta-feira, 8 de abril de 2022

das vidas confináveis




Também a BD, a exemplo de outras artes, foi apanhada pelo influxo pandémico, e certamente muito também os autores que por esse vasto mundo não desperdiçaram a oportunidade. Por aqui já passou o catalão Max com o explosivo Manifestamente Anormal, separata de 2020 do jornal A Batalha. No Brasil, Alberto Alpino publicou Diário da Pandemia, em formato e-book; por cá, Nuno Saraiva, Diário de uma Quarentena em Risco (Pim! Edições) e Luís Louro, Os Covidiotas, (Ala dos Livros), que não tivemos o ensejo de ler, ao contrário dos títulos de que falaremos hoje, duas abordagens muito diferentes aos efeitos da Covid-19 no quotidiano.

Os Quarentugas – Testemunhos de Loucura Pandémica, textos de André Oliveira (Lisboa, 1982) e desenhos de Pedro Carvalho (Barcelos, 1978), é uma série de tiras humorísticas muito bem esgalhadas sobre os cromos do confinamento: do Júlio da Brandoa, solteirão e desempregado, até ao Pai Natal – gravemente prejudicado no fabrico de brinquedos, pela interrupção das cadeias de abastecimento –, vários heróis dos quadradinhos, personagens do cinema e dos jogos de computador, e principalmente gente comum, uma forma de os autores se rirem de nós todos, inclusive de si mesmos e também do vizinho de Oliveira, que aproveitou a quarentena para fazer obras no apartamento... Batman confinado em casa de uma tia, em Paderne; o Super-Homem, isolado em Paio Pires, a passar o tempo à janela, usando a visão raio-x para para práticas pouco ortodoxas; o perfil de risco do asmático Darth Vader; o Incrível Hulk partilhando o lar com dois trolhas no Barreiro Velho. Até os marcianos de A Guerra dos Mundos tiveram de abortar o plano de nova invasão, por causa da Covid, aguardando instruções numa pensão de duas estrelas em Figueiró dos Vinhos... Episódios impagáveis: a Maria do Carmo, de Bicesse, com os oito filhos num T2 e o marido a monte; Virgílio Matos, “analista informático residente num T3 com boas áreas em Abrantes”, sempre preocupado com o arfar asmático da mulher; as delícias da família Moreira, do Carregado, no primeiro almoço de domingo, sem máscara, entre muito outras estórias da loucura normal.

De uma muito jovem autora, Ana Margarida Matos (1999), Hoje Não (bom título), vencedora do concurso “Toma lá 500 paus e faz uma BD!”, da Associação Chili com Carne. Trata-se de um livro que cumpre pela metade, entre o forte e o fraco. O melhor é o conceito: regra geral, uma prancha, como se folha de calendário se tratasse, rematada na maior parte por um texto breve em rodapé; umas vezes tomando a forma de um template, outras avançando para a dupla página, ou alterando o sentido da visualização. Os ensaios de auto-retrato ou o hiperpreenchimento da página, dando a ideia da restrição rotineira da vida num pequeno espaço, são outros bons momentos desta narrativa por imagens e texto. É aqui, porém, que as coisas se complicam: impregnadíssimo pelo ar do tempo – seria estranho se assim não fosse –, e pela ausência de referências; apenas má televisão, de que é crítica, mas não chega. Melhor quando se projecta no que está fora: o rapaz imigrante do metro, o vizinho que passeia o cão. Há, no entanto, personalidade e substância – o resto virá com o tempo.

Os Quarentugas – Testemunhos de Loucura Pandémica

texto: André Oliveira

desenhos: Pedro Carvalho

edição: Polvo, Lisboa, 2021


Hoje Não

texto e desenhos: Ana Margarida Matos

edição: Chili com Carne, Cascais, 2021

«Leitor de BD»

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