terça-feira, 1 de outubro de 2019

a estrada

Funerais com longos regressos de automóvel são sempre propícios à trama e à efabulação. Assim este Entre Cegos e Invisíveis, de André Diniz (Rio de Janeiro, 1975). O autor é um nome de referência dos quadrinhos brasileiros, como desenhador e argumentista, estando actualmente radicado em Portugal, onde tem vários livros publicados. O seu traço pontilhista é pessoalíssimo e facilmente identificável, como é apanágio duma forte personalidade artística. Para quem não está habituado, o melhor será citar livremente o Pessoa publicitário: pode estranhar-se primeiro, mas entranha-se rapidamente.
Esta é uma narrativa de estrada. O espaço é uma rodovia interurbana que liga dois aglomerados populacionais, percorrida por uma viatura em que viajam um casal, Jonas e Maitê, a irmã daquele, Leona, além de uma estranha figura cuja língua ninguém entende. Vêm do funeral do pai dos dois irmãos, figura nacional, militar com altas responsabilidades, chefe da polícia secreta; um pai ausente, pois os filhos são fruto duma ligação extraconjugal, e nunca foram reconhecidos. O tempo é 1971, no auge repressivo da ditadura militar. No rádio do carro, as notícias com maior destaque versam sobre o recém-falecido e a ocorrência nessa noite de um fenómeno astronómico: uma lua cheia mais próxima da Terra do que o costume, invulgar episódio celeste que terá repetição apenas em 2018.
Tudo sobre rodas, mesmo com a reserva do quarto passageiro, de cuja boca só saem sons que imaginamos guturais, até que o carro pára, por falta de combustível. Um automóvel imobilizado numa estrada interurbana em noite de lua cheia é uma circunstância que irá propiciar um sem número de diálogos e situações, com revelações inesperadas, temas sufocados, por vezes há muito tempo, e que vêm ao de cima. As interacções e focos de tensão marido-mulher, irmão-irmã e entre cunhadas são momentos fortes, complementados pelo estranhamento do suposto gringo que os acompanha e pelo aparecimento bem doseado doutros intervenientes, pontuando a narrativa: um cão abandonado, crianças sem eira nem beira, um casal de assaltantes, os empregados da área de serviço e da gasolineira, uma coluna militar, parentes (da família legítima) com quem penosa e acidentalmente se cruzam. E, sob a falsa quietação da noite, alguns espectros: a memória da mãe-amante do militar, uma adopção falhada, a lembrança do morto a pairar; e ainda outdoors enluarados, publicitários, mas também políticos, como o infame “Brasil – ame-o ou deixe-o”, àquela hora sem função.
André Diniz dá-nos um argumento bem urdido, intercalando diálogos e pausas, que vão ganhando uma densidade acrescida. Chegamos a ouvir o silêncio sob aquele luar tão próximo e pesado, em nocturno claro-escuro.

Entre Cegos e Invisíveis
texto e desenhos: André Diniz
edição: Polvo, 2019

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