sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Robin dos Bosques é quem um autor quiser


Ricardo Coração-de-Leão, de regresso da Terceira Cruzada, foi preso por Henrique VI, imperador romano-germânico, inimigo que pede um resgate em troca da libertação do rei. Nesse então, os regentes que este nomeara, os arcebispos de Durham e de Rouen, e a mãe, Leonor da Aquitânia, procuram satisfazer a exigência do soberano austríaco. Estamos em 1195, e o monarca “inglês” era também senhor da Normandia, desde que, no século anterior (1066), Guilherme o Conquistador largara daquelas praias futuramente heróicas para ocupar o trono no outro lado da Mancha. Até hoje, 14 de Junho de 2021, resistindo a Felipe II, Napoleão e Hitler, a velha Albion nunca mais viu bota estrangeira assentar-lhe no solo.

      Ricardo Coração-de-Leão evoca na nossa memória infantil João Sem-Terra, o irmão, futuro monarca que irá outorgar a Magna Carta. A memória histórica nem sempre é justa, ao contrário – deseja-se – da historiografia. Ricardo, grande guerreiro, sim, mas monumental patife que inaugura na Europa a modalidade da caça ao judeu para lhe extorquir os bens, inventando parvoíces para excitar a gentiaga, goza da admiração de todos os gentios, embalados por Walter Scott e Hollywood.

      Os autores do álbum de hoje – Nottingham – O Resgate do Rei – mostra-nos  um tradicional e malévolo príncipe João, que envia um seu homem de mão, Hughes de Morville, de condado em condado a arrecadar tributos para cumprir as exigências do imperador, mas, naturalmente, conluiado com o usurpador, que não está pelos ajustes. Até aqui, tudo by the book. Onde Vincent Brugeas e Emmanuel Herzet, os argumentistas, inovam é na identidade do famoso Robin dos Bosques, figura lendária de bandido ético que roubava os ricos para dar aos pobres, ao mesmo tempo que atormentava com o seu bando de sicários bonacheirões – em que avulta João Pequeno, e a cumplicidade do frei Tuck e de Lady Marian, afinal, uma mulher de armas – o xerife de Nottingham. E a história passa-se entre estes dois: uma castelã anglo-saxónica que vê os vassalos espoliados pelas autoridades anglo-normandas, de que fazem parte os xerifes, incluindo o de Nottingham, com jurisdição sobre a floresta de Sherwood. Sem querermos estragar a surpresa da leitura aos interessados, podemos avançar que do tal Robin dos Bosques nunca se ouvirá falar nesta história, e que a acção se desenrola no âmbito mais complexo da inimizade entre saxões e normandos, de que a luta pelo poder protagonizada  entre o “Lionheart” e o “Lackland” é uma das expressões.

     O tema, que pareceria batido, ganha com Brugeas e Herzet um novo interesse, para o qual contribui, e muito, o trabalho de Benoît Dellac. As sequências rápidas das pranchas mudas e enquadramentos lembram-nos Hermann, por exemplo o de As Torres de Boiis-Maury, numa narrativa movimentada, pelo meio dos troncos de Sherwood e dentro das muralhas de Nottingham, por entre emboscadas, assaltos, contendas, em que as figuras se movem velozes e as onomatopeias, linguagem BD por excelência, são usadas com generosidade.

 

Nottingham – 1. La Rançon du Roi

texto: Vincent Brugeas e Emmanuel Herzet

desenhos: Benoît Dellac

edição: Le Lombard, Bruxelas, 2021

«Leitor de BD»

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