domingo, 27 de setembro de 2020

os párias dos mares

 



Sempre houve pirataria nos mares, por vezes confundindo-se, não sem motivos, com o corso, ataque autorizado aos navios inimigos, por embarcações que não sendo da marinha de um país estão ao seu serviço com uma liberdade de acção generosa. Mas a pirataria, embora heterogénea, tem sempre por fim o saque de bens e pessoas e não cuida de patriotismos. Estamos, em muitos casos a falar de fora-da-lei absolutos, párias que renegam a autoridade dos estados, constituindo microsociedades, sempre efémeras, em ilhas e portos de que se apropriam, nomeadamente nas Caraíbas, mas também nas próprias embarcações que são o seu, digamos, ganha-pão. Um saque bem sucedido é um pecúlio arrebatado graças a muita disciplina, um quase ascetismo, que, uma vez conseguido, é dissipado em festins pantagruélicos, como se não houvesse amanhã. E muitas vezes não havia. Giles Lapouge, autor do notável ensaio sobre estes "párias do mar" – Os Piratas (1987, edição portuguesa na Antígona) – refere-se à curtíssima esperança de vida desta gente odiada que se fazia temer.


Mathieu Lauffray (Paris, 1970, também realizador de cinema e videojogos), apresenta uma prometedora personagem e uma narrativa que tem tudo para ser um marco: Raven é um pirata destemido, raptado ainda jovem enquanto servia como grumete num navio de carreira, e é também um romântico e um pé-frio, como dizem os brasileiros. De tal modo azarado que os companheiros ostracizam-no. Nada, porém, que lhe diminua o ânimo, em especial quando a possibilidade de um tesouro perdido no século anterior, enviado por Cortés ao rei de Espanha e nunca chegado ao destino, estará por ali, numa ilha à mão de semear. Esse território, não longe de Guadalupe e ignorado pelas cartas marítimas, leva o inspirador nome de “Enfado do Diabo”: acesso difícil e indígenas não só hostis como canibais. Raven não é contudo o único interessado, tem de disputar a avidez com o mais terrível flibusteiro da região, com fama de crueldade inexcedível: Lady Darksee, uma mulher, pois claro, por sinal bela, mesmo com a cicatriz que ostenta por baixo do olho direito. E apesar de ficção, Lauffray não foi demasiado longe, pois a existência de algumas mulheres no meio, mesmo comandando barcos piratas, está documentada. Para complicar as coisas, nessa ilha tão terrível em que até o próprio Satanás se aborrece, há seis meses que sobrevive um grupo de náufragos, liderado pelo Conde de Montignac, nomeado governador da ilha da Tortuga, na companhia de dois filhos e os sobreviventes da comitiva que o acompanhava. Raven e Darksee, a sua némesis, aí irão encontrar-se, para estupefacção de Montignac, e depois para algo pior. A fama de desumanidade que persegue a flibusteira não tardará a confirmar-se.

Acção, rebaldaria, solidez nas referências, um previsível triângulo amoroso e alguma inovação na caracterização das personagens, em que a rebeldia é algo mais que a marginalidade, em que o desprezo das classes dominantes por esta escória é retribuída na mesma moeda, para além do já referido "internacionalismo" endógeno e exógeno: as tripulações são heteróclitas quanto à nacionalidade e etnia e a noção de pátria, como se disse, não é popular. As pranchas são esplêndidas parecendo que se alargam, e o carisma das personagens é bastante palpável: imagine-se, para o protagonista, um espécime cruzado de Blueberry e Wolverine, com um traço que lembra umas vezes Hugo Pratt, outra Jordi Bernet, mas que no fundo é e será Mathieu Lauffray. Esplêndido,pois.


Raven t. 1 Némésis

texto e desenhos: Mathieu Lauffray

edição: Dargaud, Paris, 2020

«Leitor de BD», jornal i


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