sexta-feira, 1 de maio de 2020

maravilhas

Por suposta previsibilidade ou viver pouco suportável e inquietante ansiedade, a realidade parece ser algo que não se nos adequa: das cosmogonias genesíacas aos mitos fundadores, das ilhas maravilhosas aos universos alternativos – o que é a Utopia, de Thomas Moore senão uma e outra coisa? –, o homem nunca se resignou aos limites impostos pela natureza e pelas circunstâncias. O livro de hoje, Pandemonium à Paragusa, que dá início às deambulações de duas novas personagens, Colt & Pepper, situa-nos numa remota América do século XVII, e pertence ao subgénero do maravilhoso com enquadramento histórico. A terra fora colonizada por estranhas criaturas, vindas não se sabe bem de que universo, muitas antropomórficas, outras com as suas características próprias, mas a convivência de todos faz-se naturalmente.
Samuel Culpepper, “Pepper” para os amigos, é o capitão da guarda em Paragusa. Militar maduro à beira de gozar as delícias da aposentação, chefia as forças que protegem Domiciano, o “jovem duque”, que ajudou a elevar ao poder, destronando o “velho duque”. Mas há contestação e Pepper vê-se metido numa terrível encrenca quando percebe que Coltrayne, filho de sua irmã, é um dos jovens que se rebelam e pedem a cabeça do duque, auxiliados por Ossus, o feiticeiro mais poderoso daquelas paragens. Evocando a memória familiar, Pepper não hesita em salvar o sobrinho, pondo-se fora da lei, a escassos dias da sonhada reforma. O álbum, primeiro de uma série, decorre em três partes: das ruas, masmorras e salões de Paragusa, a uma taberna frequentada por gente do mar, na aldeia piscatória de Reed Cove, culminando no Bois de Bouleaux, ou bosque das bétulas, onde é possível encontrar as almas dos que já morreram. (Os bosques foram sempre tidos, nos tempos pré-modernos, como lugares ameaçadores, coio de marginais, bruxas, monstros e outras criaturas estranhas, lembremos os Irmãos Grimm…) Para franquear a entrada, há que responder a um enigma do guardião, resposta que terá de ser aprovada pelo irmão – uma criatura de pesadelo que lhe está colada às costas.
Os autores, a dupla croata Darko Macan (Zagreb, 1966) e Igor Kordej (Zagreb, 1957), têm incursões bem sucedidas nos comics (do Incrível Hulk ao Pato Donald, de Tarzan a Star Wars). Na frente franco-belga, Macan e Kordej assinam também um western, Marshal Bass, igualmente publicado pela Delourt.
Tratando-se de uma série, diremos apenas que o argumento de Macan se apresenta com os ingredientes do maravilhoso: lugares malditos, lugares mágicos, lugares comuns... numa narrativa em que homens e criaturas de todas as formas interagem. O traço de Kordej espalha-se por mil e um pormenores e torna-se deleitoso de ver num splash (prancha com uma só vinheta), recurso utilizado para a abertura de cada um dos capítulos: exímio como fisionomista, inventivo e generoso no detalhe.

Colt & Pepper – Pandemonium à Paragusa
texto: Darko Macan
desenho: Igor Kordej
edição: Delcourt, Paris, 2020



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