segunda-feira, 6 de julho de 2020

ideias peregrinas

Zé Nuno Fraga (n. 1974), após ter trocado a engenharia pelos quadradinhos, cuja estudo e prática aprofundou na Galiza, apresenta-se ao grande público com a adaptação da peça A Assembleia das Mulheres, de Aristófanes. O comediógrafo (e poeta) da Grécia Antiga fez representar o texto pela primeira vez em Atenas, em Janeiro de 392 a.C., num concurso teatral realizado durante as festas dionisíacas das Leneias. Perdeu; porém tratou-se dum belo insucesso, considerando os dois milénios que o texto já atravessou…
Aristófanes parodia a ideia que advogava a possibilidade de o governo da polis ser entregue às mulheres. Perante a crise que assolava Atenas, decorrente da longa Guerra do Peloponeso, travada com Esparta, um grupo de mulheres lideradas por Praxágora, disfarçadas de homens, propõe numa assembleia uma mudança de paradigma: já que o sexo masculino havia governado tão mal, era altura de tentar um governo exclusivamente delas. Mas havia mais: as leis seriam alteradas: deixaria de haver propriedade e bens particulares, tudo fazendo parte de um fundo comum. Os escravos, obviamente estavam fora desta medida, pois a democracia era só para os atenienses.
O longo diálogo entre Praxágora e o marido, convencendo-o da bondade do novo sistema, corre de feição, mesmo quando lhe é comunicado que homens e mulheres podem dormir com quem quiserem e que os filhos passarão a ser de todos os pais e mães. A forma como Fraga consegue contornar a dificuldade óbvia em reproduzir esta troca de argumentos entre o casal, é plenamente conseguida, ao longo de dez pranchas, tão cheias de movimento como de filacteras, e com um traço caricatural que se casa bem com o texto.
Se a utopia perseguida até hoje pelos visionários, poderia fazer sorrir o público ateniense nesse Janeiro de 392 anterior à nossa era, a irrisão surge quando a igualdade sexual passa a ser imposta por forma a não deixar ninguém para trás, como se leria hoje num cartaz político: antes dos jovens, havia que satisfazer os velhos, sob pena de avultada sanção em caso de incumprimento, antes dos belos os feios, e à frente dos saudáveis, os aleijados. Estamos já no domínio do grotesco, e que disputas se nos apresentam, por Zeus! De tal forma que a fome aperta. Está pois na altura de iniciar-se o banquete, prazeres da mesa e da mente, e de um prato especial, o Lopadotemakhoselakhogaleokranioleipsanodrimypotrimmatosilphiokarabomelitokatakekhymenokikhlepikossyphophattoperisteralektryonoptekephalliokinklopeleiolagōiosiraiobaphētraganopterygṓn –, um guisado imaginado pelo autor. Com ele Aristófanes brindou-nos, não com dotes culinários, mas com aquela que ainda hoje se considera a mais longa palavra jamais escrita.
Ao substituir um género por outro à frente dos destinos da cidade, cabe perguntar se estaria assim tão longe da ideia de “paridade”, como Platão viria a defender em A República, ainda que Aristófanes não parecesse partilhar do mundo ideal do filósofo, antes preferisse o gosto de meter a mão na massa...

A Assembleia das Mulheres
Texto: Aristófanes
Desenho: Zé Nuno Fraga
edição: A Seita, Prior Velho, 2019


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