sexta-feira, 24 de julho de 2020

«A Lei do Trabuco e do Punhal»


Um país que sobrevive às razias que Portugal sofreu em boa parte do século XIX, aguenta tudo, incluindo troikas e covides. Vejamos: três invasões francesas, retirada estratégica da corte para o Brasil, regência britânica, revolução constitucional, guerra civil devastadora entre liberais e absolutistas, 3-Constituições-3, ingerência externa armada, as estradas do país tomados de assalto do Minho ao Algarve – do Remexido à Maria da Fonte e Padre Casimiro...
É neste período dramático e fascinante, em que era mais seguro viajar de Lisboa ao Porto por mar que por terra, o tempo de Garrett e Herculano, que se situa a acção de Mataram-no Duas Vezes (1987), primeiro álbum da projectada série A Lei do Trabuco e do Punhal, infelizmente sem continuidade, com texto de Luís Avelar (n. 1955) e desenhos de Pedro Massano (Lisboa, 1948).
O território é o interior beirão, Avô, Benfeita, Midões – nomes que hoje só dizem algo a poucos mais que aos que lá vivem, terras de Oliveira do Hospital, Arganil, Tábua... e a personagem central é João Brandão (1825-1880), o “régulo” ou “o terror das Beiras”, misto de bandoleiro e político, um cacique dentro e fora da lei.
O álbum dá-nos um bom enquadramento histórico inicial, sequenciado por três narrativas em que o pretexto é a caça a João Nunes, o Ferreiro, aquele que virá a morrer “duas vezes”, inimigo jurado, pessoal e “político” – passe o exagero de atribuir qualquer desígnio político à cacicagem – deste salteador letrado, que permaneceu no imaginário popular.
Se não se trata de uma obra-prima, Mataram-nos Duas Vezes é uma assinalável realização da BD portuguesa. Ao contrário do que se via em muitas das suas congéneres, a informação histórica prestada ao leitor não é metida a martelo na boca das personagens, soando tantas vezes a falso, mas assumidamente fornecida através de asteriscos ou em vinhetas próprias para o efeito. Se o trabalho de Pedro Massano respeitante às fisionomias nem sempre nos agrada, é notável o tratamento dado a cada prancha, com planos visualmente muito fortes e um saudável desrespeito pelos limites das vinhetas.
Lembrando uma carta de Eça de Queirós a Oliveira Martins, entusiasmado após a leitura de Os Filhos de D. João I (1891), exortando o historiador a pegar nas incontáveis personagens sedentas de biografia e outras abordagens que povoam o nosso passado, este podia e pode ser um dos caminhos para os quadradinhos portugueses. Uma das pranchas mais notáveis é a que identifica, desfilando a cavalo, os sicários de João Brandão: o Juliana, a ferocidade em forma de homem; o Gralha, fala-barato, sempre com um corvo ao ombro; o Anjinho, alcunha apropriada para um violador; o Palaio, muito religioso, benzia-se antes de matar; o Venta Larga, feio como o nome, mas de tiro certeiro; o Faca de Mato, sempre munido dum cutelo de magarefe, com que extirpava quem lhe fizesse frente. Criaturas que só esperam um argumentista à Charlier ou à Dorison que os venha chamar do Inferno, o seu habitat natural.

A Lei do Trabuco e do Punhal – Mataram-no Duas Vezes
texto: Luís Avelar
desenhos: Pedro Massano
edição: Europress, Odivelas, 1987

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