Um
país que sobrevive às razias que Portugal sofreu em boa parte do
século XIX, aguenta tudo, incluindo troikas e covides. Vejamos: três
invasões francesas, retirada estratégica da corte para o Brasil,
regência britânica, revolução constitucional, guerra civil
devastadora entre liberais e absolutistas, 3-Constituições-3,
ingerência externa armada, as estradas do país tomados de assalto
do Minho ao Algarve – do Remexido à Maria da Fonte e Padre
Casimiro...
É neste período
dramático e fascinante, em que era mais seguro viajar de Lisboa ao
Porto por mar que por terra, o tempo de Garrett e Herculano, que se
situa a acção de Mataram-no Duas Vezes
(1987), primeiro álbum da projectada série A Lei do
Trabuco e do Punhal,
infelizmente sem continuidade, com texto de Luís Avelar (n. 1955) e
desenhos de Pedro Massano (Lisboa, 1948).
O território é o
interior beirão, Avô, Benfeita, Midões – nomes que hoje só
dizem algo a poucos mais que aos que lá vivem, terras de Oliveira do
Hospital, Arganil, Tábua... e a personagem central é João Brandão
(1825-1880), o “régulo” ou “o terror das Beiras”, misto de
bandoleiro e político, um cacique dentro e fora da lei.
O álbum dá-nos um
bom enquadramento histórico inicial, sequenciado por três
narrativas em que o pretexto é a caça a João Nunes, o Ferreiro,
aquele que virá a morrer “duas vezes”, inimigo jurado, pessoal e
“político” – passe o exagero de atribuir qualquer desígnio
político à cacicagem – deste salteador letrado, que permaneceu no
imaginário popular.
Se
não se trata de uma obra-prima, Mataram-nos Duas Vezes
é uma assinalável realização da BD portuguesa. Ao contrário do
que se via em muitas das suas congéneres, a informação histórica
prestada ao leitor não é metida a martelo na boca das personagens,
soando tantas vezes a falso, mas assumidamente fornecida através de
asteriscos ou em vinhetas próprias para o efeito. Se o trabalho de
Pedro Massano respeitante às fisionomias nem sempre nos agrada, é
notável o tratamento dado a cada prancha, com planos visualmente
muito fortes e um saudável desrespeito pelos limites das vinhetas.
Lembrando
uma carta de Eça de Queirós a Oliveira Martins, entusiasmado após
a leitura de Os Filhos de D. João I (1891),
exortando o historiador a pegar nas incontáveis personagens sedentas
de biografia e outras abordagens que povoam o nosso passado, este
podia e pode ser um dos caminhos para os quadradinhos portugueses.
Uma das pranchas mais notáveis é a que identifica, desfilando a
cavalo, os sicários de João Brandão: o Juliana, a ferocidade em
forma de homem; o Gralha, fala-barato, sempre com um corvo ao ombro;
o Anjinho, alcunha apropriada para um violador; o Palaio, muito
religioso, benzia-se antes de matar; o Venta Larga, feio como o nome,
mas de tiro certeiro; o Faca de Mato, sempre munido dum cutelo de
magarefe, com que extirpava quem lhe fizesse frente. Criaturas que só
esperam um argumentista à Charlier ou à Dorison que os venha
chamar do Inferno, o seu habitat natural.
A
Lei do Trabuco e do Punhal – Mataram-no Duas Vezes
texto: Luís
Avelar
desenhos: Pedro
Massano
edição:
Europress, Odivelas, 1987
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