Deus assinou por baixo: o Brasil é mesmo um país
abençoado. Só assim se explica a Amazónia, a bossa nova, o risco
de Brasília, a escrita de Guimarães Rosa, a poesia de Bandeira,
Cecília e Drummond, a grande escrita de Gilberto Freyre, o Samba
da Bênção e o Clube
da Esquina, os quadrinhos de
Ziraldo, as Bachianas Brasileiras,
Senna e Pelé...
Mas
como a todo o céu corresponde um inferno, a contrapartida é uma
mentalidade pós-senhorial de raiz escravocrata e racista, a
superstição em todos os estratos sociais, a rapacidade das seitas
religiosas, a violência das cidades, a pobreza endémica e um
coronelismo boçal. Então o país ergue-se da lama com os romances
de Jorge Amado, os retirantes
de Portinari, o cinema de Glauber Rocha, a música e as letras de
Chico Buarque, a Teologia da Libertação, os resistentes – de
Chico Mendes a Lula. O Brasil esteve e voltou a estar situado na área
da geografia da fome.
E o autor do livro de hoje desde cedo teve noção de como o paraíso
provável tantas vezes não passa de um purgatório desencantado.
Edgar Vasques
(Porto Alegre, 1949), arquitecto de formação, é um dos grandes
autores de quadrinhos do país. Vindo de uma família bem instalada
do estado do Rio Grande do Sul, foi no caminho diário para a
faculdade, no início da década de 1970, que, tomando contacto com o
miserê, levou em cheio com a
discrepância entre a propaganda do regime de ditadura militar e a
crua realidade da rua.
Depois
desta bofetada, como tinha coisas a dizer, criou Rango
para uma revista universitária nome que, na gíria, significa
refeição, ou comida. Mas o estômago de Rango, indigente que vive
numa lixeira, com o filho, os vizinhos do desvalimento, os cães
vira-latas, os ratos, as moscas – o estômago dá horas,
a toda a hora. O seu humor é
tão fino e certeiro, que a estreia em livro, em 1974, foi
entusiasticamente prefaciada por Erico Veríssimo.
É
preciso ter uma ponta de génio para pegar num tema tão pesado
quanto o é o da fome e da miséria extrema e fazer o leitor sorrir
e pensar. Exímio no jogo de palavras, subverte as expressões
consagradas pelo lugar-comum e as locuções populares, desmontando a
retórica do grupo dominante, e fustiga nas suas tiras, sem
contemplações, a condição (des)humana sofrida por tantos na
sociedade brasileira, invisíveis para os Chicago boys e
apaniguados. Alguns disparos: o país com milhões de miseráveis sem
nenhum Victor Hugo; do país do futuro
à terra do nunca, em
que tudo é caro, excepto a violência, que é gratuita; Ayrton
Senna, alegria do Brasil, que após o acidente fatal com o fórmula 1
em desgoverno se tornou na alegoria do Brasil; o monopólio, ou
seja, o poder que tende a transformar os homens em macacos
paralíticos, “como o nome indica”; o social-democrata, um tipo
que fez sociedade com o demo; da necessidade do spa ao contrário, o
que engorda pobre; a economia de mercado para os que podem, e de
marcado, para os que
não...
O Génio
Gabiru
texto de
desenhos: Edgar Vasques
edição: L&PM,
Porto Alegre, 1998
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