segunda-feira, 27 de abril de 2020

as tiras da fome

Deus assinou por baixo: o Brasil é mesmo um país abençoado. Só assim se explica a Amazónia, a bossa nova, o risco de Brasília, a escrita de Guimarães Rosa, a poesia de Bandeira, Cecília e Drummond, a grande escrita de Gilberto Freyre, o Samba da Bênção e o Clube da Esquina, os quadrinhos de Ziraldo, as Bachianas Brasileiras, Senna e Pelé...
Mas como a todo o céu corresponde um inferno, a contrapartida é uma mentalidade pós-senhorial de raiz escravocrata e racista, a superstição em todos os estratos sociais, a rapacidade das seitas religiosas, a violência das cidades, a pobreza endémica e um coronelismo boçal. Então o país ergue-se da lama com os romances de Jorge Amado, os retirantes de Portinari, o cinema de Glauber Rocha, a música e as letras de Chico Buarque, a Teologia da Libertação, os resistentes – de Chico Mendes a Lula. O Brasil esteve e voltou a estar situado na área da geografia da fome. E o autor do livro de hoje desde cedo teve noção de como o paraíso provável tantas vezes não passa de um purgatório desencantado.
Edgar Vasques (Porto Alegre, 1949), arquitecto de formação, é um dos grandes autores de quadrinhos do país. Vindo de uma família bem instalada do estado do Rio Grande do Sul, foi no caminho diário para a faculdade, no início da década de 1970, que, tomando contacto com o miserê, levou em cheio com a discrepância entre a propaganda do regime de ditadura militar e a crua realidade da rua.
Depois desta bofetada, como tinha coisas a dizer, criou Rango para uma revista universitária nome que, na gíria, significa refeição, ou comida. Mas o estômago de Rango, indigente que vive numa lixeira, com o filho, os vizinhos do desvalimento, os cães vira-latas, os ratos, as moscas – o estômago dá horas, a toda a hora. O seu humor é tão fino e certeiro, que a estreia em livro, em 1974, foi entusiasticamente prefaciada por Erico Veríssimo.
É preciso ter uma ponta de génio para pegar num tema tão pesado quanto o é o da fome e da miséria extrema e fazer o leitor sorrir e pensar. Exímio no jogo de palavras, subverte as expressões consagradas pelo lugar-comum e as locuções populares, desmontando a retórica do grupo dominante, e fustiga nas suas tiras, sem contemplações, a condição (des)humana sofrida por tantos na sociedade brasileira, invisíveis para os Chicago boys e apaniguados. Alguns disparos: o país com milhões de miseráveis sem nenhum Victor Hugo; do país do futuro à terra do nunca, em que tudo é caro, excepto a violência, que é gratuita; Ayrton Senna, alegria do Brasil, que após o acidente fatal com o fórmula 1 em desgoverno se tornou na alegoria do Brasil; o monopólio, ou seja, o poder que tende a transformar os homens em macacos paralíticos, “como o nome indica”; o social-democrata, um tipo que fez sociedade com o demo; da necessidade do spa ao contrário, o que engorda pobre; a economia de mercado para os que podem, e de marcado, para os que não...

O Génio Gabiru
texto de desenhos: Edgar Vasques
edição: L&PM, Porto Alegre, 1998

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