Há indignidades históricas em relação às quais a
hermenêutica historiográfica não deve condescender, mesmo com o
argumento, neste caso falacioso, do anacronismo a evitar. Uma delas é
a escravatura, estabelecida na pré-modernidade pelos
Descobrimentos. Sim, poderemos relegar as civilizações da
Antiguidade e Alta Idade Média para esse limbo em que a própria
“Humanidade” estava em construção: os escravos eram despojos de
guerra. Chegados ao século XV, quando os papas haviam condenado
expressamente, em bulas sucessivas, o comércio iníquo de seres
humanos – do mercado de escravos de Lagos, no tempo do Infante D.
Henrique ao tráfico transatlântico com destino às plantações das
Américas, aqui também contrariado pelas sociedades abolicionistas
nos séculos XVIII e XIX – (chegados aqui), acaba a pertinência de
qualquer ensaio justificativo tendencialmente desculpabilizador ou
neutral: se o anacronismo é um pecado capital em História,
historiografia em que a ética da razão está ausente
é particularmente repulsiva. E não será por certas tribos
africanas em estádio civilizacional incipiente (ou não), terem
feito mercancia dos seus despojos de guerra com traficantes de carne
humana, que alguma vez a retratação das antigas potências
coloniais não deverá ser feita.
É
na realidade das plantações na América do Norte que se centra o
livro de hoje: Louisiana,
com texto de Léa Chretien (1986) e Gontran Toussaint (Namur, 1989),
dupla também na vida. Trata-se de uma saga familiar, que percorre a
questão inter-racial desde a integração do território, antes
francês, nos Estados Unidos, no dealbar do século XIX, até à luta
pelos direitos cívicos na década de 1960. Rememorada por uma velha
senhora instada pelas netas a contar-lhes a história da família,
que se socorre de uma empregada negra para pôr no papel as memórias
de século e meio. Memórias familiares das plantações com pouco de
que se orgulhar – ou talvez não, de qualquer modo com o peso da
vida construída calcando as vidas dos outros como subgente, o que
dava imenso jeito para prosperar.
Ao regime
escravocrata perverso, junta-se a brutalidade do patriarcado, em que
da mulher-esposa se espera parição, obediência e docilidade e das
escravas a submissão aos instintos animais do patrão e do filho
deste. Como, porém, nem todos somos feitos da mesma massa, há
mulheres e mulheres, o que torna o relato imprevisível, suscitando o
interesse pela continuação nos próximos tomos. As personagens são
fortes e complexas, os cenários dividem-se entre a plantação de
cana-de-açúcar e a cidade de Nova Orleães com as cores e os
cheiros do mundo crioulo, onde, mesmo então, já havia negros
livres, filhos de brancos, cujos pais não quiseram dar destino
idêntico aos da mercadoria humana que compravam. Gontran Toussaint,
ainda com espaço para a evolução do traço, é já uma certeza na
sua geração.
Lousisana –
1. La Couleur du Sang
texto:
Léa Chretien
desenho:
Gontran Toussaint
edição:
Éditions Dargaud, Paris, 2019
Sem comentários:
Enviar um comentário