segunda-feira, 13 de abril de 2020

uma sociedade escravocrata e patriarcal

Há indignidades históricas em relação às quais a hermenêutica historiográfica não deve condescender, mesmo com o argumento, neste caso falacioso, do anacronismo a evitar. Uma delas é a escravatura, estabelecida na pré-modernidade pelos Descobrimentos. Sim, poderemos relegar as civilizações da Antiguidade e Alta Idade Média para esse limbo em que a própria “Humanidade” estava em construção: os escravos eram despojos de guerra. Chegados ao século XV, quando os papas haviam condenado expressamente, em bulas sucessivas, o comércio iníquo de seres humanos – do mercado de escravos de Lagos, no tempo do Infante D. Henrique ao tráfico transatlântico com destino às plantações das Américas, aqui também contrariado pelas sociedades abolicionistas nos séculos XVIII e XIX – (chegados aqui), acaba a pertinência de qualquer ensaio justificativo tendencialmente desculpabilizador ou neutral: se o anacronismo é um pecado capital em História, historiografia em que a ética da razão está ausente é particularmente repulsiva. E não será por certas tribos africanas em estádio civilizacional incipiente (ou não), terem feito mercancia dos seus despojos de guerra com traficantes de carne humana, que alguma vez a retratação das antigas potências coloniais não deverá ser feita.
É na realidade das plantações na América do Norte que se centra o livro de hoje: Louisiana, com texto de Léa Chretien (1986) e Gontran Toussaint (Namur, 1989), dupla também na vida. Trata-se de uma saga familiar, que percorre a questão inter-racial desde a integração do território, antes francês, nos Estados Unidos, no dealbar do século XIX, até à luta pelos direitos cívicos na década de 1960. Rememorada por uma velha senhora instada pelas netas a contar-lhes a história da família, que se socorre de uma empregada negra para pôr no papel as memórias de século e meio. Memórias familiares das plantações com pouco de que se orgulhar – ou talvez não, de qualquer modo com o peso da vida construída calcando as vidas dos outros como subgente, o que dava imenso jeito para prosperar.
Ao regime escravocrata perverso, junta-se a brutalidade do patriarcado, em que da mulher-esposa se espera parição, obediência e docilidade e das escravas a submissão aos instintos animais do patrão e do filho deste. Como, porém, nem todos somos feitos da mesma massa, há mulheres e mulheres, o que torna o relato imprevisível, suscitando o interesse pela continuação nos próximos tomos. As personagens são fortes e complexas, os cenários dividem-se entre a plantação de cana-de-açúcar e a cidade de Nova Orleães com as cores e os cheiros do mundo crioulo, onde, mesmo então, já havia negros livres, filhos de brancos, cujos pais não quiseram dar destino idêntico aos da mercadoria humana que compravam. Gontran Toussaint, ainda com espaço para a evolução do traço, é já uma certeza na sua geração.

Lousisana – 1. La Couleur du Sang
texto: Léa Chretien
desenho: Gontran Toussaint
edição: Éditions Dargaud, Paris, 2019


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